
Zuzu Angel sofreu a dor de ter um filho morto pela repressão. Não foi uma morte comum. Primeiro, o sequestraram. Depois, levaram-no para a tortura e, como se não bastasse, sumiram com o seu corpo. Poucas mães suportariam tal dor. E esta foi a primeira morte de Zuzu.
Mesmo morta Zuzu lutou contra uma ditadura insana para tentar resgatar o corpo de Stuart Angel Jones, seu filho querido. Foi chamada de louca pelos militares, viu amigos se afastarem e sofreu ameaças. Zuzu nunca dessistiu. Até que um acidente misterioso trouxe a sua segunda morte.
Mas ainda que morta fisicamente, Zuzu prosseguiu como mito, como símbolo da luta de uma mulher corajosa, íntegra e inteligente.
Mas no início deste mês, chegou às telas Zuzu Angel, obra do diretor Sérgio Rezende e com Patrícia Pilar no papel da estilista. E Zuzu morreu outra vez. Agora morria um pouco o mito, tão mal construído neste filme que deixa muito a desejar.
Na verdade, o Sérgio tinha três opções para abordar a vida de Zuzu. A primeira era a da mãe do guerrilheiro. Não era uma opção boa, pois ele poderia fazer um filme panfletário e rancoroso. Poderia optar por dar um tratamento o mais real o possível na tentativa de nos fazer sentir a dor de Zuzu sentiu, durante um dos períodos mais negros da história do país. Essa me parecia ser a melhor opção, por contar o Brasil que muitos não conheceram, por contar quem foi essa mulher lutadora, por justificar o dinheiro gasto na história de uma mulher sobre a qual - infelizmente - não se fala mais.
Mas o Sérgio optou pela terceira opção: contar apenas a história da mãe Zuzu. Tudo neste filme de pouco menos do que duas horas gira em torno da figura da mãe sofrida em busca do seu filhinho querido, nas mãos da ditadura malvada. Mas a história de Zuzu não é só isso. Porque só isso vira drama mexicano. Seria preciso dar ênfase também ao contexto em que a luta de Zuzu transcorreu, para se entender melhor o que essa mãe teve que enfrentar, para se conhecer melhor a luta do filho, para se conhecer melhor o Brasil que Stuart queria mudar. E é justamente aí que o filme escorrega.
Talvez devido ao baixo orçamento, a restituição de época é falha, a seleção das músicas, infeliz, e as interpretações da maioria do elenco são decepcionantes. O problema de muitos atores brasileiros é que eles não conseguem se desvincular dos seus trabalhos nas novelas e levam para a tela atuações-clichês e pouco inspiradas. É o caso de Paulo Betti no papel de Lamarca, que repetiu as mesmas caras-e-bocas com as quais havia interpretado o mesmo guerrilheiro, no filme de 1991. Patrícia Pillar é dramática, mas não emociona no papel de Zuzu e Luciana Piovani no papel de Elke Maravilha é de fazer chorar de pena. Daniel de Oliveira também não convence como Stuart e até o veterano Othon Bastos está caricato como o brigadeiro que preside o inquérito sobre a morte do guerrilheiro. Durante toda a exibição, sentimos a desconfortável sensação de estarmos assistindo a um especial de tv e temos a impressão de que ouviremos o Plin-Plin! da Globo a qualquer momento.
Tudo isso é fruto de uma direção descuidada e oportunista que optou pelo mais fácil. Lógico que o drama de uma mãe atrás do corpo do filho levaria multidões aos cinemas. Ele sabia disso. Só não parece entender que Zuzu não foi uma mãe qualquer e sim um mito. Um mito que merecia muito mais do que ser morto pela terceira vez, num filme tão decepcionante.
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Em 13 de abril deste ano, prestando uma homenagem a Zuzu Angel, postei o texto abaixo e avisei sobre o lançamento do filme em questão. Sugiro àqueles que não leram o texto e ainda pretendam assistir ao filme, que o leiam antes para entender o que foi o mito Zuzu.
Zuzu
Por volta das 8 horas da manhã de 14 de maio de 1971, um opala seguia pela avenida 28 de setembro (hoje bouleavard), no bairro boêmio de Vila Isabel, quando foi cercado por dois outros veículos de cor preta. Homens de terno escuros saltaram destes dois últimos veículos, já com armas em punho, e tiraram do opala um jovem de boa aparência, que não demonstrou reação. Os homens eram membros do CISA, Centro de Informações da Aeronáutica. Um deles tomou a direção do opala, enquanto o jovem bonitão era levado para um dos carros de cor preta. Foi a última vez que o jovem bonitão foi visto em público.Na zona sul, no outro lado da cidade, uma mãe deve ter recebido um e-mail da sua intuição materna: "Aconteceu aquilo que você mais temia."
A mãe aflita em questão era a maior estilista do país, a mineira ZuLeika Angel Jones, que na época tinha uma coluna de moda no O Globo. Seu filho Stuart Edgard Angel Jones, que havia completado 26 anos em 11 de janeiro, estava na clandestinidade desde 1969 e podia ser preso a qualquer momento. Seu retrato constava em um cartaz colado em muros e postes pela cidade. Também em aeropostos e outros locais públicos. Seu crime? Ter largado o curso de economia na UFRJ para integrar o grupo de luta armada Movimento Revolucionário 8 de outubro, que lutava contra o regime militar. Ele era casado com Sônia Maria Morais Angel Jones, estudante de administração e economia na UFRJ, militante da Aliança Libertadora Nacional e que, na época estava exilada na frança, após ter sido presa numa panfletagem no feriado de 01/05/69, na Praça Tiradentes e libertada em agosto do mesmo ano.
Com a entrada de seu filho na luta armada, Zuzu começou a se aproximar de autoridades do governo, inclusive costurando para a primeira dama, Yolanda Costa e Silva. Também passou a manter contato com importantes autoridades internacionais, para o caso de vir a precisar delas. Foram dois anos de angústia até o e-mail da intuição.
Quando foi preso, Stuart estava indo se encontrar com Alex Polari, outro integrante do MR-8, com quem teria um ponto - como os guerrilheiros chamavam seus encontros - às 10h. Mal sabia que Alex havia sido preso na véspera. Bastante torturado, concordou em levar os militares ao local do ponto. Mas para despistar ele disse que o horário marcado seria às 8h. Para falta de sorte dos dois, Stuart apareceu mais cedo.
Levado para o CISA, ao lado do então Aeroporto Internacional do Galeão, foi submetido a uma sessão de torturas cruéis, comandadas pelo famoso Brigadeiro Burnier. Por fim, Stuart foi amarrado à traseira de um jeep e arrastado pelo pátio, com a boca presa ao cano de descarga do veículo (vá respirar fumaça de óleo diesel!, como escreveria Chico Buarque em sua Cálice).
Todo esse ritual sangrento foi presenciado por Alex Polari, atrvés de uma pequena janela na porta da cela onde se encontrava. Dias mais tarde, Alex fez chegar a Zuzu uma carta em que contava a forma como Stuart havia sido morto. Imediatamente Zuzu dedicou-se a um outro tipo de desfile. Percorreu órgãos da imprensa, aqui e no exterior, denunciando a morte do seu filho querido. O governo do general Médici, que jurava que não havia tortura no Brasil, ficou irado. Um processo foi aberto para apurar as denúncias. Zuzu comparecia às audiências, na Auditoria Militar, usando elegantes vestidos negros e um ainda mais elegante véu negro encobrindo o seu rosto. "Estou de luto pelo meu filho." , dizia à imprensa. Furiosos, os militares continuavam negando a morte do estudante. Os cartazes com sua foto continuavam a ser espalhados cinicamente pela cidade. Zuzu continuou a sua luta. Chegava a fazer pequenos discursos em lugares públicos, irritando ainda mais os militares. Ela chegou a ser convidada a visitar o sinistro DOI-CODI, no sombrio quartel do Exército na rua Barão de Mesquita. Lá encontrou dependências limpas e nenhum sinal das torturas que, hoje se sabe, eram praticadas ali. No final da visita, Zuzu virou-se para o comandante que a acompanhava e disse: "Sr. comandante, demita o seu oficial do dia! Ele é um incompetente! Ele não sabe nem armar uma mentira. O senhor acha que irei acreditar nessas camas com lençóis esticadinhos deste jeito?"
A farsa teve fim em setembro do mesmo ano, quando um reltório da marinha foi divulgado, dizendo que Stuart havia sido morto num tiroteio com membros da repressão, em 05 de janeiro de 1971. Mas o corpo estranhamente não fora encontrado. A Aeronáutica negava qualquer envolvimento e o fato de que Stuart tivesse passado por suas dependências.
Zuzu lançou-se então em outra luta: recuperar o corpo do seu filho, que nunca seria encontrado. Há suspeitas de que tenha sido jogado na Baía de Guanabara de um helicóptero da aeronáutica.
Com a imprensa brasileira ainda sob os rigores da censura, Zuzu passou a distribuir cartas a autoridades internacionais, explicando a sua luta. O senador Edward Kennedy chegou a levar o caso ao congresso norte-americano, o que deixou Médice roxo de raiva. Zuzu conseguiu o apoio também de artistas como Liza Minelli, Joan Crawford, Kim Novak, Veruska, Jean Shrimpton e Margot Fontein. Em 1972, chegou a fazer, em Nova Iorque, um desfile de roupas com desenhos de tanques, armas e muitos anjos. Símbolos da repressão que se vivia por aqui e também do seu filho.
Nessa época, Sônia, a viúva de Stuart volta clandestina ao Brasil e promete ajudar Zuzu a esclarecer a morte do marido e localizar o seu corpo. Mas pouco pôde fazer, pois foi presa juntamente com Antônio Carlos Bicalho Lana, em novembro de 1973, numa viagem de ônibus entre São Vicente e São Paulo. Ambos foram mortos sob tortura, num caso ainda não esclarecido. Assim como Stuart, os dois constam na lista dos desaperecidos políticos.
Zuzu também passou a ser perseguida, enquanto continuava sua luta incansável. Recebia telefonemas anônimos, teve a correspondência violada, o telefone grampeado e era seguida nas ruas por carros suspeitos. Aconselhava as filhas a sempre andarem pelo meio da rua à noite, para o caso de precisarem fugir.
Chegou a ser detida em 1975, na porta do hotel Sheraton, na zona sul do Rio, ao interpelar o Secretário de Estado dos EUA, Henry Kinsinger, em visita ao Brasil. Zuzu conseguiu entregar-lhe uma carta na qual contava o seu martírio. Os militares chamavam-na de louca e continuavam a negar que Stuart tivesse morrido sob torturas.
Depois desse episódio no Sheraton, Zuzu passou a temer pela própria vida e começou a enviar cartas a amigos dizendo que se "algum acidente vier a acontecer comigo, os culpados serão os mesmos que tiraram a vida do meu amado filho."
O último a receber a tal carta foi Chico Buarque, que pouco pôde fazer, pois a censura não dava trégua à imprensa. Apenas compôs Angélica, canção lançada anos mais tarde.
Zuzu morreria uma semana depois, por volta das 3h da madrugada de 14 de abril de 1976. Ela havia saído de uma festa e espatifou o seu carro na atual Auto-Estrada Lagoa-Barra, próximo à entrada do Túnel que hoje leva o seu nome, em São Conrado. Não foram encontrados sinais de derrapagem, não estava chovendo e várias testemunhas garantiram que ela não havia bebido nada na festa. Mesmo assim, a perícia fechou o laudo como "vítima de acidente automobilístico". E ponto final. Ninguém discordava da perícia naquela época. Foi mais um fato sinistro numa época sinistra.
Ufa! Você acha que a vida de Zuzu daria um filme? Pois é justamente isso que acabou de acontecer. Zuzu Angel é o drama que o cineasta Sérgio Rezende deverá estrear em 04 de agosto, com Patrícia Pilar na pele da protagonista, Daniel de Oliveira como Stuart e Leandra Leal como Sônia.
Uma bela homenagem a essa brasileira que é um exemplo de coragem e, por isso mesmo, tem feito muita falta, nessas três décadas de sua ausência.
Luz pra você, Zuzu.