CENA 1: Domingo, Rio de Janeiro, 11 de outubro de 2009. Houve uma corrida no Aterro do Flamengo e as pistas haviam sido fechadas. Eu havia pedalado até o Leblon e estava voltando, quando as pistas do Aterro estavam começando a ser liberadas, na altura de um posto de gasolina ao lado do Iate Clube. A ciclovia passa entre a rua e o posto.
Os homens da guarda municipal estavam retirando os cones para liberar as pistas. Eu descia a toda pela ciclovia, pois tinha que voltar pra casa e arrumar as malas para viajar para Natal. O motorista da linha 128 (Leblon-Rodoviária) só precisaria esperar mais alguns segundos até que os cones fossem retirados e as pistas liberadas. Mas, impaciente, ele preferiu jogar o carro sobre a ciclovia e escapar do bloqueio.
Fui pego de lado. Caí de ombro. Mas como já tenho experiência com quedas, não me feri nada. Saí ileso, juntamente com a bike. Era uma bela manhã de domingo e a ciclovia estava cheia. Com a exceção de um ciclista gente boa, ninguém se indignou com a cena, ninguém parou, ninguém me ajudou. Me lembro que um frentista chegou a rir da minha cara. Os caras da guarda municipal também nada fizeram.
Graças a Deus nada sofri, mas poderia ter sido diferente.
CENA 2 - Na noite do último dia 20, alguns jovens se divertiam andando de skate, dentro da pista interditada para reparos, no Túnel Acústico, Gávea, zona sul do Rio. Um deles era o músico Rafael Mascarenhas, filho da atriz Cissa Guimarães. Policiais Militares permitiram que playboyzinhos dirigindo carros em alta velocidade entrassem no túnel interditado e o resto já virou um escândalo nacional.
Aí, eu pergunto: qual das duas cenas foi menos violenta? Carros fazendo pega em uma via interditada e supostamente deserta, por acidente atropelam e matam um jovem ou um motorista que atira um ônibus sobre uma ciclovia lotada?
De maneira alguma estou tentando diminuir a tragédia acontecida na Gávea. Mas é que quando se fala em violência no Rio de Janeiro, a primeira imagem que nos chega, geralmente é de traficantes fortemente armados em confronto com a polícia ou fechando ruas. Sempre achei que um ato de violência é aquele em que menospreza a segurança de uma pessoa. O motorista do ônibus que me atropelou foi muito mais violento do que os garotões que atropelaram o filho da Cissa. Creio que ele não tinha a intensão de me matar, mas colocou em risco a vida de várias pessoas que aproveitavam a manhã ensolarada para pedalar.
Dias antes do meu atropelamento, vi um carro importado avançar o sinal numa avenida perto aqui de casa, no momento em que uma mulher atravessava com um carrinho de bebê. Por sorte não ocorreu uma tragédia. Isso não saiu nos jornais, mas foi claramente um ato de violência.
Os playboyzinhos que mataram o filho da Cissa Guimarães foram violentos. Os PMs que permitiram que isso acontecesse também, assim como pai do atropelador que tentou abafar o caso, abrindo a carteira.
O motorista que me atropelou foi um monstro de violência. As pessoas que ignoraram o fato também. O frentista que riu da minha cara também foi cúmplice da cena violenta. Enfim, traficantes armados são apenas um pingo no grande caldo da violência no Rio de Janeiro, uma cidade que há décadas enfrenta uma guerra civil não declarada e como não podia deixar de ser, seus habitantes parecem não ligar muito para a vida humana. Inclusive a sua.
Como diz Ernest Hemingway na foto ali em cima: "Pedalar uma bike é a melhor maneira para se perceber os contornos do seu país." Eu hoje vejo uma profundidade maior nesta frase. Pedalar pelas ruas do Rio pode nos dar os dois lados da moeda: as belezas de uma cidade e a constatação de que aqui a vida humana vale menos do que o caráter de quem joga um ônibus em cima de uma ciclovia lotada.
Aaaaah, as fotos que vocês estão vendo são de uma exposição que estava em cartaz na semana em que a cidade foi abalada pelo crime na Gávea e que é bacaninha a começar pelo título: Dreams on Wheels.
A exposição, patrocinada pela ONG do mesmo nome, viaja pelo mundo mostrando o esforço de várias cidades do mundo (Berlim, Sydney, Londres, Copenhagem, Paris, Nova Iorque, entre outras) para promover o uso de bikes como meio de transporte, a fim de tentar dar uma forcinha para a recuperação do clima, melhorar a qualidade de vida dos seus habitantes e também o trânsito.
A exposição podia ser vista até o último dia 25 no Centro Cultural Hélio Oiticica. Entre os dias 1 e 16 estará em Brasília. Depois, seguirá pelo mundo.
Na minha recente visita a Nova Iorque, percebi que o número de gente pedalando nas ruas estava bem maior do que o habitual, principalmente nos locais mais descolados como o Soho, Village, Chelsea e Nolita. Em Williamburg, Brooklyn, ao cair da tarde, o número de gente bonita e cool pedalando de volta do trabalho nos faz pensar estarmos em Pequim. Mas isso não é nenhum modismo. Trata-se de um movimento crescente de pessoas conscientizadas, procurando uma forma mais natural e humana de vida. Talvez isso explique o falto de não haver nenhuma foto feita em cidades brasileiras.
Não entendeu? Releia a CENA 1 e talvez você entenda.
* Mais detalhes sobre o Dream on Wheels, mergulhe
aqui
* As fotos não estão muito boas devido a iluminação deficiente e eu estar sem flash.
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