sexta-feira, novembro 19, 2010

E o homem da telefônica mudou a música

Billy Ray Cyrus
Eu tenho o hábito antigo de bisbiolhotar, de vez em quando, a parada norte-americana.
Se você tem o mesmo hábito, já reparou como o Top 100 da Billboard está cheio de músicas country?

Juice Newton
De repente, um monte de rostinhos bonitinhos e corpinhos sarados, mais parecendo ídolos do rock ou da música pop, começaram a invadir a maior parada de sucessos do mundo.
Mas essa não é a primeira vez que a parada pop é invadida por artistas country.

Carrie Underwood
A diferença com os ídolos de hoje é que eles parecem se esforçarem bastante para serem confundidos com ídolos pop urbanos. Taylor Swift, por exemplo, uma das queridinhas da nova geração, foi clickada na platéia de um grande desfile de modas em Milão, recentemente.
Isso pode chocar para quem esperava criaturas desleixadas, usando chapéus de palha, camisas quadriculadas e calças de brim coringa.

Gary Allan
Os puristas irão lamentar que o country se traiu, se vendeu, se descarecterizou, se afastou das raízes. E blá-blá-blá.

George Strait
Mas é preciso ter em mente que a América há muito não é mais a mesma.

Gretchen Wilson
De repente a nação mais poderosa do mundo já não é tão poderosa assim. Sua moeda está descendo a ladeira e sua economia cambaleia. A recessão fecha empresas, põe milhares de chefes de família na rua da armagura e esmaga sonhos.

Jason Aldean
E se as coisas estão ruins nos grandes centros como Los Angeles, Miami, Chicago, Washington, Boston, Dallas, San Francisco ou Nova Iorque, imagine lá no sul, na América agrícola, dos pequenos produtores, dos que vivem do que plantam, para um país que consome cada vez menos?

Jerrod Niemann
Por isso, não espere ouvir coisas do tipo: "Eu cavalgando, mamãe na cozinha preparando torta de maçã e papai na roça, ordenhando nossa vaquinha Mimosa."

Josh Thompson
Não.
E nem poderia ser. Essa nova geração convive com drogas cada vez mais presentes, sexo mais livre, bebedeiras homéricas, prostituição, latifundiários esmagando pequenos produtores, clima cada vez hostil (tornados e secas), gente se divorciando, famílias morando em traillers e outras caindo na estrada. Amores desfeitos em tempos difíceis, infidelidade e gente fazendo das tripas coração para pagar sua hipoteca e não perder sua propriedade.

Taylor Swift (um milhão de discos vendidos em uma única semana este mês)
Na verdade, a parte sul dos EUA é a mais patriota, conservadora e tradicional. E nesses tempos de dificuldades, desesperança e desilusões, os valores mudaram.
Glen Campbel
Por outro lado, a música country há anos vem lutando para afirmar o seu valor e vencer o preconceito que ainda impera nas rádios, na mídia e na cabeça da maioria dos habitantes dos grandes centros.

Mas pode acreditar: a coisa já foi bem pior.
Até o final da década de 60, se você fosse um cidadão de classe média e vivesse numa cidade como Chicago ou Nova Iorque e dissesse curtir música country, provavelmente teria que encarar risinhos, deboches e comentários maliciosos. Pois seria a coisa mais ridícula e cafona que poderia se ouvir num grande centro.
Isso até o homem da telefônica aparecer.
Tudo aconteceu quando o compositor country Jimmy Webb estava dirigindo o seu carro por uma estrada de Oklahoma e viu um funcionário da telefônica local pendurado em um poste, trabalhando. Não era nas proximidades da cidade de Wichita, - que fica no Texas (aliás existem outras Wichitas, mas nenhuma em Oklahoma), como muitos pensam.
Webb teve um puta insight e imaginou aquele homem ouvindo a sua amada através da linha. E passando a manter uma conversa imaginária com ela.
Uma idéia simples, mas desenvolvida com tanto sentimento que encantou Glen Campbel, já um astro da música country na época. Campbel, então, decidiu gravá-la em seu álbum de 1968. E não fazia a menor idéia do que estava por vir.
Capa do compacto com a música caipira mais famosa do planeta
Dizer coisas lindas de forma muito simples sempre foi uma característica da boa música country.
Uma vez, o mestre do jazz, Charlie Parker, estava excursionando pelo país, no início dos anos 50, e ao parar numa lanchonete à beira de uma estrada, ficou fascinado com uma música que tocava numa junke box. Ficou estático ao lado da caixa, ouvindo a canção, enquanto o seu empresário gritava:
"Charlie! Volte para a mesa. Que diabos você tanto ouve essa música de caipiras?"
E Bird, como Parker era conhecido, responde:
"Cara, se liga na letra!"
Esse episódio, além de mostrar que Parker não era considerado genial à toa, mostra o preconceito que girava em torno da música feita por artistas do sul e do meio-oeste dos EUA.
Não pense que aqui no Brasil a coisa é diferente.
Nossa música sertaneja durante muito tempo foi chamada depreciativamente de música caipira e cantores como Renato Teixeira, por exemplo, apesar de venderem bastante no interior, eram totalmente desprezados nos grandes centros.
Mudando de um polo a outro, quando Cartola lançou seu primeiro disco, em 1974, muita gente boa se declarou "surpreso como um homem humilde podia compor obras primas do quilate de As Rosas Não Falam, como se uma pessoa humilde não pudesse ter tal talento. Como se só intelectuais pudessem fazer obras de qualidade.
Quando o compacto de Wichita Lineman foi lançado, em outubro de 1968, o mercado musical ainda estava sob o impacto de Bob Dylan, o maior letrista da história do rock. Mas apesar de ter trazido uma saudável preocupação com as letas, Dylan também criou uma espécie de surto de compositores inteligentes. De repente você não era ninhguém na mídia se não dissesse coisas notáveis. Mesmo que a música não pedisse tal qualidade.
O mundo também estava sob a influência do psicodelismo e dos movimentos políticos. Era uma época em que os artistas tinham que ser engajados, politizados, sérios e originais. Todos tinham que ter algo a dizer. E deviam dizer de forma politicamente criativa e intelectualmente poética. Nem que ninguém entendesse nada. Cantar coisas do dia-a-dia era algo inconcebível.
Tá certo que artistas do rock, como os Beatles e os Rolling Stones, já vinham cantando country. Mas era mais uma forma de "curtir uma diferente". Além do mais, eles faziam - com exceções - um country "inteligente" e "com preocupações sociais". Um country "crítico" e "inteligente". Um country para moradores de Los Angeles, San Francisco ou Nova Iorque; não para o pessoal de Nashville.
E, então, Campbel apareceu cantando coisas lindamente banais como:

"I am a lineman for the county and I drive the main road



Searchin' in the sun for another overload


I hear you singing in the wires. I can hear you through the whine


And the Wichita lineman is still on the line"

E os americanos, colocarm Dylan, a política e os psicodélicos de lado para correrem para as lojas e comprar essa bela canção.
Para se ter uma idéia do sucesso alcançado pelo single, ele além de chegar ao topo da parada exclusiva para música country e ficar lá por três semanas, também conseguiu entrar na parada pop - feito raríssimo para um cantor country - e atingir a terceira posição, numa época em que o Top 100 da Billboard estava recheado de gente como Beatles, Rolling Stones, Jimi Hendrix, Janis Joplin, Jefferson Airplane, Cream, Traffic, Pink Floyd, Aretha Franklin e outros talentosos.
Glen Campbel, um pacato cantor country, permaneceu 15 semanas na parada americana, cantando sobre um homem da telefônica que mantém um diálogo imaginário com sua amada. Anos atrás, a canção foi eleita pela Rolling Stone uma das 500 grandes canções de todos os tempos.
A música também tem uma riqueza melódica digna de um Burt Bacharach ou de um Paul MacCartney ou de um Quincy Jones ou de outro qualquer grande compositor/arranjador.
Não foi por acaso que tem recebido dezenas de regravações ao longo dos anos, incluindo gente do peso de um Ray Charles (que você pode ouvir na sequência), um Tom Jones, um Sérgio Mendes, a queridinha da nova geração do jazz Cassandra Wilson, além de gravações inusitadas como a do mega grupo funk Kool & The Gang e a banda pós-punk This Mortal Coil.
Nem preciso dizer que a partir de Wichita Lineman o country passou a ser visto com mais seriedade.
Aliás, através dos tempos, a música country vem tentando manter o prestígio conquistado, através de artistas como...

...Dolly Parton,...
...Johnny Cash,...
...Lotteta Lynn,...
...e Willie Nelson, entre outros.
Mas a primeira vez em que os americanos dos grandes centros tiveram que admitir que estavam apaixonado por uma música country foi quando Glen Campbel cantou sobre o homem da telefônica.
Não sei se toda essa garotada que está despontando na música country hoje tem consciência disso.
O grande mérito de Wichita Lineman, na minha opinião, é ser grandiosa através da simplicidade. É ser uma obra prima feita em cima do mundano. De repente, um homem da companhia telefônica pendurado em um poste, não é apenas isso. Conseguir extrair poesia e beleza da brutalidade ou mediocridade do dia-a-dia é uma das qualidades que mais admiro num bom artista, seja em que área for.
Canções como Wichita Lineman são uma inspiração para a vida. São um apelo para que olhemos a nossa volta. Um momento de beleza pode estar ocorrendo e nem percebemos por ser esse momento de uma aparente banalidade para nossos olhos apressados.
A banalidade de um funcionário da telefônica suspenso em um poste.

* Na sequência musical, você deve estar ouvindo além da versão original de Wichita Lineman com o Glen Campbel, também a versão do mestre Ray Charles. Ainda Jason Aldean, cantando Wide Open, e Jerrod Nieman, com Lover, lover. Ambos são novos queridinhos da música country.

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