Eu Sou Uma Preta Velha, Aqui, Sentada Ao Sol
Em outubro de 1973, com grande estardalhaço, Milton Nascimento lançava o luxuoso álbum Milagre dos Peixes, seu primeiro trabalho produzido pelo também integrante do Clube da Esquina, Wagner Tiso. A segunda faixa deste disco chama-se Carlos, Lúcia, Chico e Tiago e tem o sub-título que dá nome a este post.
Hoje pela manhã, quando fui arrumar a minha estante, este Cd pulou em cima de mim, me forçando a lembrar um fato que já havia esquecido.
Hoje pela manhã, quando fui arrumar a minha estante, este Cd pulou em cima de mim, me forçando a lembrar um fato que já havia esquecido.
Quando este disco foi lançado, eu tinha 14 anos e já tinha uma vida meio boêmia. Eu andava com pessoas mais velhas e de vez em quando, íamos à zona de prostituição do Mangue, uma enorme área desvalorizada e decadente, perto do Centro, onde diversos quarteirões e ruas eram ocupados por bordéis, botequins, biroscas, casas noturnas. Tudo voltado para a prostituição. Mulheres vinham de todos os locais do país para ganharem a vida ali.
Com a chegada das obras do metrô, toda aquela área foi desocupada, os bordéis vieram abaixo e o que restou do Mangue, hoje está na Vila Mimosa, um trecho de rua, atrás da Praça da Bandeira. O Mangue deu lugar ao atual bairro da Cidade Nova, onde fica a sede da prefeitura.
Bem, eu e alguns colegas do Colégio Pedro II costumávamos ir ao Mangue para ver as putas. Só ver, pois como éramos menores, só as mais caídas iriam se arriscar a querer alguma coisa conosco. A maioria nos ignorava. Então, sentávamos em um bar e tentávamos esconder a nossa ansiedade. Às vezes, alguma se aproximava. Nós lhe pagávamos umas cervejas e era aquele tal de mão ali, beijo aqui, dedo acolá. Nas raras vezes em que a polícia aparecia, nós nos escondíamos no banheiro das mulheres. Putas não têm esse pudor.
Meus pais não sabiam que eu freqüentava o Mangue e nem podiam saber. Por isso, naquele final de madrugada, em fevereiro de 1974, quando deparei com a minha vó entrando no Mangue, senti as minhas pernas fraquejarem.
Minha vó Elisa tinha um irmão chamado Augusto, que era doente mental. Ele vivia numa dessas instituições para doentes, que quando estão superlotadas, deixam alguns internos fugir. E quando fugia, ele ia ao Mangue a procura de uma mulher. E essa mulher avisava a minha vó.
Vovó movimentou o seu corpo curvado até a porta do puteiro e perguntou pela Diana. De longe, escondido atrás da pilastra de uma birosca, eu vi a corpulenta e seminua Diana trazer uma cadeira para a minha avó. Uma outra puta lhe trouxe café num desses copos que antes havia abrigado requeijão ou geléia, sei lá!
E foi nesse momento que o sol nasceu. E minha avó estava sentada, voltada justamente para o leste. Assim, meio curvada, a velha Elisa apontava os cabelos prateados para a luz ainda inocente da manhã de verão e o reflexo que vi ali tornaram aquela cena ainda mais poética. Ali eu tinha o primeiro insight literário do qual me lembro. "Cara, eu vou ter que escrever sobre isso.", prometi.
E como se aquela cena fosse o flautista de Hamelin e eu, um camundongo, quando percebi, já estava indo em direção a minha vó.
"O que a senhora está fazendo aqui, vó?", perguntei.
"Vim pegar o seu tio e levá-lo de volta para o hospital. Sente aqui comigo."
Sentei ao seu lado. O seu cheiro de Leite de Rosas se contrastava com o fedor de cigarro, esperma, gordura e testosterona. Minha vó parecia linda de banho tomado e toda arrumada. Com o mesmo vestido que ia a missa aos domingos, lá estava ela sentada naquela rua suja, onde as últimas putas passavam agarradas aos clientes mais ordinários. Era a hora da xêpa.
A tal Diana voltou e minha avó nos apresentou como apresentaria uma velha amiga.
"Ele ainda está dormindo.", Diana, "Quer que o acorde?"
"Não, eu espero ele acordar. Deixe ele descansar. Vá descansar também, minha filha."
Diana trouxe mais café com bolachas cream-cracker. Depois, nos desejou um bom dia e sumiu por dentro do puteiro. Ficamos ali no sol, minha avó e eu, enquanto o dia amanhecia. As putas com cara de sono e seus clientes bêbados davam lugar aos primeiros passantes apressados, a caminho do trabalho.
Diana trouxe mais café com bolachas cream-cracker. Depois, nos desejou um bom dia e sumiu por dentro do puteiro. Ficamos ali no sol, minha avó e eu, enquanto o dia amanhecia. As putas com cara de sono e seus clientes bêbados davam lugar aos primeiros passantes apressados, a caminho do trabalho.
"Ninguém deve saber que você me viu aqui.", vó Elisa pediu.
"Tudo bem, vó."
"Ninguém vai saber que encontrei você aqui."
Beijei o seu rosto, selando o nosso acordo, que nunca seria quebrado.
"Agora, vá embora! Pode me deixar aqui. Já estou acostumada."
Após um novo beijo em seu rosto salpicado de Leite de Rosas e talco Palmolive, me juntei aos últimos bêbados que deixavam o Mangue. Antes de sair, porém. Ainda olhei para trás e saboreei a poesia da cena da velhinha sentada ao sol, sob os olhares dos que passavam. Era apenas isso. Uma preta velha ali, sentada ao sol.
"Cara, um dia eu tenho que escrever sobre isso." E fui embora, com a música do Milton na cabeça.
E o Mangue acabou. Minha vó e meu tio partiram. E essa manhã, quando o cd pulou em cima de mim, senti que não havia cumprido de todo as promessas feitas naquele amanhecer.
"Cara, tenho que postar sobre isso."
"Cara, tenho que postar sobre isso."
9 Comments:
Júlio a esquina do clube ainda permace lá, não?
Ab,cs
Mais do que cumprida esta promessa,hem JULIO.
Estas histórias,por mais que o tempo passe,a gente nunca esquece.
Grande abraço!
Milton,
a esquina do clube já acabou há muito tempo.
gd ab
DO,
com certeza não dá pra esquecer.
gd ab
pow! sensacional este post! emocionante mesmo! conseguiu me transportar para outra era! parabéns!
vc jah visitou o site da skol beats? tah bem legal! vários vídeos dos botõezinhos... acessa ae: www.invasaobeat.com.br
abraço!
Júlio, lindo o seu relato e mais lindo ainda foi a atitude da sua vó. Que não tinha o preconceito de ir onde precisasse atrás do filho. Amor de mãe não tem preço!
Vc compriu com a promessa com louvor. Sua vó deve estar feliz em ver que uma cena com ela desencadeou todo esse talento. Parabéns!
Bjos.
Estou de queixo caído!
Lindo relato poético de uma avó.
Nossa...
Parabéns, agora a promessa está plenamente realizada.
Vera,
obrigado. Uma experiência como essa tem que ser compartilhada.
bjs
Valeu, Taia. Também há poesia na sarjeta.
bjs
Poderia repetir o comentário que fiz na postagem anterior mas nesse caso com um excesso de inspiração.
Insight, algo entre a revelação e a epifania, algo que é ao mesmo tempo muito importante e completamente irrelevante, que se apresenta com uma intensa experiência subjetiva. Um fugaz relance de uma verdade antiga, pessoal e intransferível.
Em um estalo, conseguiu transferir a sua emoção pra mim. Como consegue?
Beijus
Júlio,
um texto delicioso de se ler, uma história repleta de bons sentimentos, como ternura, carinho, saudades, respeito. Creio que sua avó, onde quer que esteja, abriu um sorriso pleno de felicidade e, com seus cabelos de prata, sentiu-se orgulhosa do neto que soube perfeitamente transmitir tão mágicos momentos.
Um abraço.
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