domingo, janeiro 11, 2009

AI - que porrada!

"No dia 14 de junho de 1972, Ana Maria Nacionovic Corrêa, 25 anos, Marcos Nonato da Fonseca, Antônio Carlos Bicalho Lana e Iúri Xavier Pereira, todos militantes da ALN, estavam almoçando no Restaurante Varella, na Mooca. o proprietário do estabelecimento, Manoel Henrique de Oliveira, que era alcagüete da polícia, telefonou para o DOI/CODI-SP, avisando da presença de algumas pessoas que tinham suas fotos afixadas em cartazes de “Procurados”, feitos na época pelos órgãos de segurança. Os agentes do DOI/CODI, assim que se certificaram da presença dos quatro companheiros, montaram uma emboscada em torno do restaurante, mobilizando um grande contingente de policiais.
De imediato, foram fuzilados Iúri e Marcos Nonato. Ana Maria, ainda vivia, quando um policial, ouvindo seus gritos de protesto e de dor, impotente perante a morte iminente, aproximou-se desferindo-lhe uma rajada de fuzil FAL, à queima-roupa, estraçalhando-lhe o corpo. Ato contínuo, os policiais fizeram uma demonstração de selvageria para a população que se aglomerou em volta daquela já horrenda cena. Dois ou três policiais agarravam o corpo de Ana Maria e o jogavam de um lado para o outro, às vezes lançando-o para o alto e deixando-o cair abruptamente no chão. Descobriram-lhe também o corpo ensagüentado, lançando impropérios e demonstrando o júbilo na covardia de tê-la abatido. Não satisfeitos, desfechavam-lhe ainda coronhadas com seus fuzis, como se mesmo morta Ana Maria representasse ainda algum perigo.
Da emboscada, conseguiu escapar, ferido, Antônio Carlos Bicalho Lana (morto em 30 de novembro de 1973), testemunha, dos três assassinatos.
A população, revoltada com tamanha violência e selvageria, esboçou, dias depois, uma reação de protesto, tentando elaborar um abaixo-assinado que seria encaminhado ao Governador do Estado. Mas, devido ao clima de terror existente no País naquela época, somado ao pânico de que aquelas cenas de verdadeiro horror pudessem se repetir com eles, a iniciativa foi posta de lado. Também as ameaças feitas pelos policiais, na hora do crime, intimidaram os populares."

"Estudante de Psicologia na Universidade de São Paulo, era a responsável pela imprensa da União Estadual dos Estudantes de São Paulo, com ativa militância no movimento estudantil dos anos 1967/68. Foi presa em 9 de novembro de 1972, na Parada de Lucas, Rio de Janeiro, em batida policial realizada por uma patrulha do 2º Setor de Vigilância Norte, após rápido tiroteio, em que morreu um policial.Após correr alguns metros e se esconder em vários lugares, Aurora foi aprisionada, viva, dentro de um ônibus onde havia se refugiado momentos antes.Foi torturada desde o momento de sua prisão, inclusive na presença de vários populares que se aglomeravam ao redor da cena. Aurora foi conduzida para a Invernada de Olaria. Lá, foi torturada nas mãos dos policiais do DOI/CODI e integrantes do famigerado “Esquadrão da Morte”.Aurora viveu os mais terríveis momentos nas mãos daqueles carrascos, que além dos já tradicionais pau-de-arara, sessão de choques elétricos, somados a espancamentos, afogamentos, queimaduras, aplicaram-lhe a “coroa de cristo”, ou “torniquete”, que é uma fita de aço que vai gradativamente sendo apertada, esmagando aos poucos o crânio.No dia 10 de novembro, Aurora morreu em conseqüência dessas torturas. Seu corpo chegou ao IML/RJ como ‘desconhecida’, pela Guia n° 43 da 26ª D.P.Após prendê-la e torturá-la, jogaram seu corpo crivado de balas na esquina das Ruas Adriano com Magalhães Couto, no Bairro do Méier (RJ). A versão oficial divulgada pelos órgãos de segurança era de que a morte de Aurora seria conseqüência de uma tentativa de fuga, quando era transportada na rádio-patrulha que a prendera. Ao tentar fugir, Aurora teria sido baleada e morta."

Os relatos e fotos acima foram tirados do ótimo arquivo do Grupo Tortura Nunca Mais. Existem outros relatos. Muitos. São centenas de jovens que pensaram que pudessem mudar o país e o mundo apenas com boas idéias e foram colidos por um trem chamado AI-5, o ato quarentão, que fez aniversário no último dia 13 de dezembro e que eu não podia deixar passar em branco. Muito se falam dos chamados "heróis contra a ditadura", como Gabeira, Gil, Caetano, Zuzu Angel, Ulysses Guimarães, Herzog, etc. De maneira nenhuma quero diminuir a importância de todos eles. Mas só quero lebrar as centenas de pequenos heróis que deram suas vidas e sobre eles pouco se fala. Eu tive um primo que foi preso e torturadíssimo no Doi-Codi, como já falei aqui. Do seu sofrimento, pouco se fala. Por isso acho esse arquivo do Tortura... uma importante forma de homenagear esses heróis esquecidos.

Sobre a decretação do Ato em si, ainda me lembro da minha mãe preparando o jantar, enquanto assistíamos a novela Beto Rockfeller, sucesso na época, quando a transmissão foi subtamente foi interrompida para uma cadeia de rádio-televisão que mostrava a assinatura do monstro, aqui no Palácio Guanabara. Enquanto isso, várias pessoas já estavam sendo presas.
No dia seguinte, minha madrinha Dinah, sábado 14, apareceu em nossa casa, no subúrbio do Lins de Vasconcelos, e ainda me lebro dela sussurrando para a minha mãe: "Parece que a partir de agora a coisa vai ficar feia." Em meus nove anos de idade, eu não entendi porque elas falavam tão baixo, pois nossa família sempre foi barulhenta. Mas a partir de então, teríamos que falar baixinho certas coisas.
Hoje, isso é um passado distante. Hoje, podemos gritar tudo o que quisermos. Só precisamos aproveitar melhor esse privilégio.

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quinta-feira, junho 19, 2008

1968: Uma sexta-feira sem happy-hour, pois ainda não terminou

Foto do Jornal do Brasil



E de repente já se passaram quarenta anos de 1968, o ano mais marcante do século passado. Palestras, entrevistas, livros, rodas-de-leituras, documentários, reportagens e resenhas têm sido feitos para discutir, relembrar ou tentar entender aqueles 365 dias em que o mundo quase pegou fogo. Muito tem se falado dos fatos marcantes daquele ano inesquecível. Mas existe um fato do qual poucos falam e que, no meu entender, mudou os rumos da história no Brasil.

Primeiro, devemos deixar o romantismo de lado. 1968 não foi só de Paz & Amor, hippies, Beatles e Rolling Stones. Foi de muita guerra, tumultos, assassinatos, conflitos, mortes e repressão.


Antes da tal sexta-feira, houve a quinta-feira, 20 de junho. Naquela tarde, centenas de estudantes haviam invadido a reitoria da Faculdade de Economia da UFRJ, na Praia Vermelha, e mantiveram os reitor em cárcere privado. A PM foi chamada. Nervosos, os estudantes combinaram que só libertariam o reitor, se a PM se comprometesse a não efetuar nenhuma prisão. E assim chegou-se a um acordo.


Só que a polícia não cumpriu a promessa. Metade dos estudantes, incluindo as lideranças, conseguiram deixar o local, junto com o reitor. Mas a segunda metade, uns 400, foram impedidos pelos policiais fortemente armados. A maioria foi espancada e presa. Algumas dezenas deles sairam correndo, indo refugiar-se no campo do Botafogo, ali perto. Parte da imprensa foi atrás e registrou cenas chocantes, com os policiais militares espancando e humilhando estudantes desarmados e deitados no gramado. Os jornais do dia seguinte mostrariam fotos de PMs urinando em cima dos rapazes e enfiando cacetetes nos traseiros das moças.


Já era sexta-feira e a cidade pegou fogo.


Imediatamente as lideranças estudantis marcaram uma grande manifestação no Centro. Aparentemente seria mais uma das muitas que já haviam ocorrido naquele ano. Mas não foi.


Eu tinha oito anos na época e gostava de assistir nos jornais as cenas dos confrontos entre estudantes e a polícia. Eu ainda não entendia muito bem o que estava acontecendo no país e achava graça daquela correria toda. Por isso, quando soube que haveria manisfestação naquela tarde, voltei do colégio excitado, só para ver os flashes do que estava acontecendo lá no Centro.


A manifestação começou lá pelo meio-dia e logo percebeu-se que havia algo novo no ar, pois, pela primeira vez, a população em massa estava apoiando os estudantes, indignada com o que havia lido nos jornais. Os trabalhadores pararam de trabalhar, as pessoas nas calçadas ou nas janelas dos escritórios aplaudiam a massa estudantil. Contrariada, a polícia decidiu reagir à altura e, pela primeira vez, abriu fogo contra os manifestantes. Ainda mais indignada, a população juntou-se aos estudantes. Cenas inusitadas passaram a ser vistas, com homens de terno e gravata jogando pedras nos policiais, contínuos armando barricadas na Rio Branco e secretárias atirando do alto dos prédios grampeadores, pesos de papel, cinzeiros e até calculadoras e máquinas de escrever. A PM reagiu com mais balas e bombas de gás lacrimogênio.


Em poucos minutos, a Rio Branco parecia uma praça de guerra, com trincheiras feitas de latas de lixo e caixotes, carros incendiados e vitrines depredadas. A manifestação se transformou no mais perto que esta cidade já chegou de uma guerra civil. De um lado, tiros e bombas; do outro, chuva de pedras e objetos atirados dos edifícios.


Diante da força bruta da polícia, as lideranças estudantis resolveram se retirar da zona de conflito e bateram em retirada. Em poucos minutos todos já estavam a salvo em seus apartamentos classe média, na zona sul.


E aí aconteceu o mais fantástico daquele dia. Em seu livro Os Carbonários, Alfredo Sirkis, revela que os estudantes começaram a ligar uns para os outros, enquanto ouviam pelo rádio ou TV, relatos impressionantes da grande batalha que estava se travando no Centro. Felizmente todos estavam bem. Mas uma pergunta não queria se calar: se todos os estudantes estavam em casa, quem estava combatendo lá no Centro?


Era o povo. Contínuos, vigias, desempregados, secretárias, motoristas, comerciários, balconistas, camelôs. Pela primeira vez - e acho que foi a última -, sem o empurrãozinho de nenhuma liderança estudantil ou política, o povo foi para as ruas e combateu bravamente durante toda a tarde, demonstrando o seu descontentamento com aquele governo militar há quatro anos no poder e que ainda não havia conseguido efetuar as mudanças necessárias para tornar este país uma nação de verdade. E ainda tratava estudantes indefesos como criminosos!


A maior parte das ruas do Centro ficou intransitável. A nuvem de fumaça das bombas de gás eram vistas em Niterói. Até hoje não se sabe ao certo o número de mortos naquela sexta-feira, enquanto o Hospital Geral da Polícia Militar ficou lotado de soldados feridos. Ao entardecer, o Comandante Geral da PM foi obrigado a admitir que havia perdido o controle da situação e o governador pediu ajuda ao Exército. Por volta das oito da noite, tropas deixaram os quartéis e tomaram as ruas centrais. E a paz voltou ao Rio.


Dias mais tarde, 26 de junho, para mostrar que não queriam conflito, as lideranças estudantis orgnaizaram a famosa Passeata dos Cem Mil, que tornou-se histórica e que acabou ofuscando a importância daquela sexta-feira em que realmente não houve happy-hour. Digo importância, porque, segundo o meu entendimento, acho que foi ali que os militares começaram a tramar o maldito AI-5, que entraria em vigor, meses mais tarde, em 13 de dezembro. Na verdade, acho que os ditadores nunca se importaram muito com as manifestações estudantis, pois eram eventos comandados por um bando de garotos de classe média. Mas quando é o povo que vai para rua lutar com a polícia, a coisa muda de figura. Aquela sexta-feira mostrou ao povo a força que ele tem. Mostrou aos estudantes que o povo não precisaa deles para ir para as ruas. E mostrou aos militares uma resposta teria que ser dada, antes que eles perdessem o controle da situação. E a resposta seria dada na forma mais dura, através daquele terrível ato que mergulhou o país na ditadura.


A geração de 1968 foi gloriosa, mas teve que pagar um preço muito alto por toda aquela insenssatez. E, a julgar pelo recente episódio dos soldados do Exército que entregaram três rapazes do Morro da Providência, aqui no Rio, a traficantes de uma favela rival, acho que o nosso país, de certa forma, até hoje paga a conta daquela sexta-feira sem happy-hour.



Outra foto do JB mostra as primeiras prisões, no início da manifestação estudantil, na sexta-feira sangrenta.

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