1968: Uma sexta-feira sem happy-hour, pois ainda não terminou
Primeiro, devemos deixar o romantismo de lado. 1968 não foi só de Paz & Amor, hippies, Beatles e Rolling Stones. Foi de muita guerra, tumultos, assassinatos, conflitos, mortes e repressão.
Antes da tal sexta-feira, houve a quinta-feira, 20 de junho. Naquela tarde, centenas de estudantes haviam invadido a reitoria da Faculdade de Economia da UFRJ, na Praia Vermelha, e mantiveram os reitor em cárcere privado. A PM foi chamada. Nervosos, os estudantes combinaram que só libertariam o reitor, se a PM se comprometesse a não efetuar nenhuma prisão. E assim chegou-se a um acordo.
Só que a polícia não cumpriu a promessa. Metade dos estudantes, incluindo as lideranças, conseguiram deixar o local, junto com o reitor. Mas a segunda metade, uns 400, foram impedidos pelos policiais fortemente armados. A maioria foi espancada e presa. Algumas dezenas deles sairam correndo, indo refugiar-se no campo do Botafogo, ali perto. Parte da imprensa foi atrás e registrou cenas chocantes, com os policiais militares espancando e humilhando estudantes desarmados e deitados no gramado. Os jornais do dia seguinte mostrariam fotos de PMs urinando em cima dos rapazes e enfiando cacetetes nos traseiros das moças.
Já era sexta-feira e a cidade pegou fogo.
Imediatamente as lideranças estudantis marcaram uma grande manifestação no Centro. Aparentemente seria mais uma das muitas que já haviam ocorrido naquele ano. Mas não foi.
Eu tinha oito anos na época e gostava de assistir nos jornais as cenas dos confrontos entre estudantes e a polícia. Eu ainda não entendia muito bem o que estava acontecendo no país e achava graça daquela correria toda. Por isso, quando soube que haveria manisfestação naquela tarde, voltei do colégio excitado, só para ver os flashes do que estava acontecendo lá no Centro.
A manifestação começou lá pelo meio-dia e logo percebeu-se que havia algo novo no ar, pois, pela primeira vez, a população em massa estava apoiando os estudantes, indignada com o que havia lido nos jornais. Os trabalhadores pararam de trabalhar, as pessoas nas calçadas ou nas janelas dos escritórios aplaudiam a massa estudantil. Contrariada, a polícia decidiu reagir à altura e, pela primeira vez, abriu fogo contra os manifestantes. Ainda mais indignada, a população juntou-se aos estudantes. Cenas inusitadas passaram a ser vistas, com homens de terno e gravata jogando pedras nos policiais, contínuos armando barricadas na Rio Branco e secretárias atirando do alto dos prédios grampeadores, pesos de papel, cinzeiros e até calculadoras e máquinas de escrever. A PM reagiu com mais balas e bombas de gás lacrimogênio.
Em poucos minutos, a Rio Branco parecia uma praça de guerra, com trincheiras feitas de latas de lixo e caixotes, carros incendiados e vitrines depredadas. A manifestação se transformou no mais perto que esta cidade já chegou de uma guerra civil. De um lado, tiros e bombas; do outro, chuva de pedras e objetos atirados dos edifícios.
Diante da força bruta da polícia, as lideranças estudantis resolveram se retirar da zona de conflito e bateram em retirada. Em poucos minutos todos já estavam a salvo em seus apartamentos classe média, na zona sul.
E aí aconteceu o mais fantástico daquele dia. Em seu livro Os Carbonários, Alfredo Sirkis, revela que os estudantes começaram a ligar uns para os outros, enquanto ouviam pelo rádio ou TV, relatos impressionantes da grande batalha que estava se travando no Centro. Felizmente todos estavam bem. Mas uma pergunta não queria se calar: se todos os estudantes estavam em casa, quem estava combatendo lá no Centro?
Era o povo. Contínuos, vigias, desempregados, secretárias, motoristas, comerciários, balconistas, camelôs. Pela primeira vez - e acho que foi a última -, sem o empurrãozinho de nenhuma liderança estudantil ou política, o povo foi para as ruas e combateu bravamente durante toda a tarde, demonstrando o seu descontentamento com aquele governo militar há quatro anos no poder e que ainda não havia conseguido efetuar as mudanças necessárias para tornar este país uma nação de verdade. E ainda tratava estudantes indefesos como criminosos!
A maior parte das ruas do Centro ficou intransitável. A nuvem de fumaça das bombas de gás eram vistas em Niterói. Até hoje não se sabe ao certo o número de mortos naquela sexta-feira, enquanto o Hospital Geral da Polícia Militar ficou lotado de soldados feridos. Ao entardecer, o Comandante Geral da PM foi obrigado a admitir que havia perdido o controle da situação e o governador pediu ajuda ao Exército. Por volta das oito da noite, tropas deixaram os quartéis e tomaram as ruas centrais. E a paz voltou ao Rio.
Dias mais tarde, 26 de junho, para mostrar que não queriam conflito, as lideranças estudantis orgnaizaram a famosa Passeata dos Cem Mil, que tornou-se histórica e que acabou ofuscando a importância daquela sexta-feira em que realmente não houve happy-hour. Digo importância, porque, segundo o meu entendimento, acho que foi ali que os militares começaram a tramar o maldito AI-5, que entraria em vigor, meses mais tarde, em 13 de dezembro. Na verdade, acho que os ditadores nunca se importaram muito com as manifestações estudantis, pois eram eventos comandados por um bando de garotos de classe média. Mas quando é o povo que vai para rua lutar com a polícia, a coisa muda de figura. Aquela sexta-feira mostrou ao povo a força que ele tem. Mostrou aos estudantes que o povo não precisaa deles para ir para as ruas. E mostrou aos militares uma resposta teria que ser dada, antes que eles perdessem o controle da situação. E a resposta seria dada na forma mais dura, através daquele terrível ato que mergulhou o país na ditadura.
A geração de 1968 foi gloriosa, mas teve que pagar um preço muito alto por toda aquela insenssatez. E, a julgar pelo recente episódio dos soldados do Exército que entregaram três rapazes do Morro da Providência, aqui no Rio, a traficantes de uma favela rival, acho que o nosso país, de certa forma, até hoje paga a conta daquela sexta-feira sem happy-hour.
Outra foto do JB mostra as primeiras prisões, no início da manifestação estudantil, na sexta-feira sangrenta.
Marcadores: História
4 Comments:
Muito bem escrito e interessante este post. Sempre acho que damos muito pouca importância a nossa história, é só perguntar a qualquer pessoa com menos de trinta anos para explicar o que foi “a marcha dos cem mil”para constatar isso. E aqui, Júlio nos relembra, de forma dinâmica e envolvente, as agruras ocorridas quando da implantação da ditadura, que deveriam estar vivas em nossa memória, até para evitarmos cair no mesmo erro. Adorei a leitura, escrita num momento muito oportuno.
palavras fortes e muito verdadeiras.
parabéns pelo blog.
Era muito pequeno nesta época,mas é sempre bom ler as experiencias de quem viveu-a.
Boa semana,JULIO!
parabens, palavras sinceras.
beijo.
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